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sábado, 8 de junho de 2013

Inocência - As Crianças Perdidas



Deus. Olá. Eu não sei bem como rezar, mas eles disseram que você responderia assim mesmo. Resolvi tentar. Acho que o senhor sabe quem eu sou, certo? Todo mundo na rua me conhece, então por que o senhor não me conheceria? Ainda mais se ‘cê for mesmo omi... omi... Como é que falam mesmo? Ah, eu não sei bem. Mas me disseram que você está em todos os lugares (desculpa, mas isso é revoltante. Ora, o senhor não podia dividir essa sua capacidade com pelo menos alguns de nós? Eu bem que gostaria de poder fazer várias coisas ao mesmo tempo... E os vendedores da rua jamais me acusariam de roubar nada - mesmo que eu tenha roubado mesmo - porque eu estaria em outro lugar na mesma hora, não é?). Se você está em todos os lugares, então sabe quem sou eu, certo? Com certeza já brincou de pique-esconde no Mar dos Perdidos com a gente e nunca nem falou nada, não é danado?
Enfim, meu nome é Gabriela. Prazer. Os meninos me chamam de Gabi. Não sei quem colocou em mim esse nome. Na verdade, sei pouca coisa ou nada sobre mim mesma. Jon disse que no orfanato comemorávamos meu aniversário em 13 de Outubro, ou algo assim. Ele lembra porque sempre colocavam algum tipo de desenho com as datas de aniversário de todo mundo por lá. Eu não lembro de nada disso, mas ele diz que eu era muito pequena pra lembrar. Tinha só alguns meses quando cheguei lá. E aqui vai a minha história, segundo Jon...
Um belo dia (tem que ser belo, porque é o dia em que eu apareço!!), ele estava andando com os amigos na rua e ouviu um choro de bebê; vinha do lixão ali ao lado. Os meninos disseram que era impressão de Jon, mas ele não arredou o pé e correu na direção de onde achava que vinha o choro. Ele não sairia dali até achar o bebê dono daquele choro, ele dizia. Quando os amigos dele perceberam que ele falava sério, foram ajudar a me procurar. Mais cedo ou mais tarde me acharam. Nessa parte, Jon sempre costuma dizer que eu era “ainda mais suja do que sou hoje” e eu sempre bato nele quando diz isso. A culpa é minha se eu estava em um lixão? Ele também diz que minha amizade com o lixo começou a partir daí, aquele nojento! Que fique claro que isso é mentira, ok Deus? Ok.
Voltando ao assunto, eu nem ligo realmente pra essa história. É claro que nem toda ela é verdadeira: você acha mesmo que os meninos estavam andando inocentemente na rua? Claro que não, eles nunca fazem isso. Sei disso porque ando com eles; há sempre algo novo para se aprontar. Mas eu não deveria dizer isso, não é? As pessoas do bairro dizem que temos que nos comportar para ir ao céu... Sobre isso, fiz uma aposta com Jon pra ver quem chega no céu primeiro. É claro que eu vou ganhar. Ele riu e disse que eu era mesmo boba. Bagunçou meu cabelo que já não é a coisa mais linda do mundo daquele jeito que só ele consegue e saiu, rindo e repetindo “corrida para o céu, haha, corrida para o céu”. Ele é mesmo um idiota...
Mas ei, Deus, eu só queria agradecer mesmo. Se eu não tivesse sido colocada naquele lixão naquele dia (ou em outro, quem sabe?) eu nunca teria conhecido Jon. E eu agradeço por ter Jon. Ele é como um grande irmão mais velho. Até mesmo quando fugiu do orfanato, ou presídio, como ele costuma chamar, me levou junto. Tá certo que eu não dei muita alternativa, mas ele podia ter me impedido de ir. E não impediu. Ele me trouxe com ele e cuidou de mim, assim como cuida de todos os outros garotos agora também. Então, Deus, obrigada por me dar Jon e por me tirar dos meus pais. Eu realmente não gostaria de conviver com alguém que joga uma criança no lixo. Eu gosto de conviver com pessoas como o Jon, e ele eu já tenho. Então obrigada, de coração.

Ah, e mais uma coisa: não conta pra ele, por favor? Ele vai me perturbar para sempre, sempre e sempre se souber disso!


Amém. É isso que eles dizem quando terminam de rezar, não é? Amém.
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

Coletivo Poesia Marginal disse...

Lembra muito capitães de areia, na narração da Lisa. Sinceramente, não vejo como um tema tão delicado poderia ser tratado de forma mais leve e inocente. Muito bom.